Auxílio-reclusão na Lei Nª 13.846/19 (MP 871/19) e os Regimes Prisionais Brasileiros – Aspectos Críticos.

24 de Julho de 2019

Em 18 de janeiro o Presidente da República publicou a MP 871/19, cujo teor foi convertido na Lei nº 13.846/19, em 18 de junho de 2019 e, dentre as várias alterações apresentadas pela Lei Ordinária, houve a alteração substancial do benefício de auxílio-reclusão.

Auxílio-reclusão é o benefício previdenciário que tem por base o ideal de solidariedade, uma vez que é “devido, nas mesmas condições da pensão por morte, aos dependentes do segurado de baixa renda recolhido á prisão que não receber remuneração da empresa nem estiver em gozo de auxílio-doença ou aposentadoria.”

Com o intuito de contribuir com o entendimento da presente reflexão, assim como conceituar termos e expressões usuais ao operador do direito, mas pouco conhecidos e difundidos, vale fragmentar o que o legislador apresentou como auxílio-reclusão e trazer a lume algumas definições.

Primeiramente, Segurado é, por definição legal “a pessoa física que exerce atividade remunerada, efetiva ou eventual, de natureza urbana ou rural, com ou sem vínculo de emprego, a título precário ou não”.

Qualidade de Segurado nada mais é que o período em que o indivíduo mantém a cobertura do seguro social, ainda que ausentes contribuições previdenciárias, tempo este intitulado como período de graça, nos termos do que prevê o artigo 15 da Lei nº 8.213/91.A Lei prevê situações e prazos específicos como períodos de carência, podendo o referido prazo se estender por até 03 (três) anos, quando preenchidos os requisitos legais.

Por fim, esmiuçando o disposto no artigo 80 da Lei nº 8.213/91, cabível a conceituação do que é o dependente para fins previdenciários.

Dependentes são as pessoas que, embora não contribuindo para a Seguridade Social, a Lei de Benefícios elenca como possíveis beneficiários do Regime Geral de Previdência Social [...] em boa parte, os dependentes mencionados na lei previdenciária coincidem com aqueles que a lei civil reconhece credores de alimentos a serem prestados pelo segurado.

Superados os conceitos iniciais, a primeira das alterações trazidas pela Lei nova é o fato de que antes, o benefício de auxílio-reclusão não prescindia de carência, que nada mais é do que o número mínimo de contribuições previstas para a concessão de um benefício previdenciário, ou seja, com a redação anterior não havia a necessidade de comprovação de número mínimo de contribuições, podendo inclusive, ser concedida a prestação previdenciária se existente uma única contribuição, bastando que o indivíduo ostentasse a qualidade de segurado, antes de seu recolhimento à prisão.

A redação do artigo 26 da Lei nº 8.213/91, em seu inciso I, contava com a previsão de que independia “de carência a concessão das seguintes prestações: pensão por morte, auxílio-reclusão, salário-família e auxílio-acidente;” inciso esse que foi revogado pela Lei nº 13.846/19.

O benefício de auxílio-reclusão passou a exigir um número mínimo de contribuições com requisito para a sua concessão, ou seja, passou a ter carência, sendo inserido no teor do artigo 25, inciso IV da Lei nº 8.213/91, cuja conteúdo prevê: “A concessão das prestações pecuniárias do Regime Geral de Previdência Social depende dos seguintes períodos de carência, ressalvado o disposto no art. 26: IV - auxílio-reclusão: 24 (vinte e quatro) contribuições mensais.

Dessa forma, quando do requerimento administrativo para a concessão do auxílio-reclusão é necessária a comprovação de que o Segurado preso, antes de recolhido à prisão, tenha no mínimo 24 (vinte e quatro) contribuições previdenciárias mensais, ainda que não de forma contínua, além de demonstrar a existência da qualidade de Segurado deste, dentre os demais requisitos indispensáveis para o deferimento do pedido.

Além de implementar o requisito carência mínima à prestação previdenciária em comento, a Lei nº 13.846/19 alterou substancialmente o Artigo 80 da Lei de Benefícios, passando à seguinte redação:

“O auxílio-reclusão, cumprida a carência prevista no inciso IV do caput do art. 25 desta Lei, será devido, nas condições da pensão por morte, aos dependentes do segurado de baixa renda recolhido à prisão em regime fechado que não receber remuneração da empresa nem estiver em gozo de auxílio-doença, de pensão por morte, de salário-maternidade, de aposentadoria ou de abono de permanência em serviço.”

Considerando que a Lei de Benefícios é eminentemente cível, para fins de prisão e recolhimento prisional, entendeu-se por adotar a regra do artigo 33 do Código Penal com relação aos regimes prisionais de cumprimento de penas privativas de liberdade, termos, na prática, indispensáveis ao reconhecimento do direito a prestação previdenciária, ao dispor que regime fechado é a pena sujeita à execução em estabelecimento prisional de segurança máxima ou média, e regime semiaberto é a pena cuja execução se daria em colônia agrícola, industrial, ou estabelecimento similar.

 Na prática, há uma série de conceitos e requisitos para a determinação do regime inicial do cumprimento de pena privativa de liberdade.

O artigo 33 do Código Penal dispõe acerca dos regimes de cumprimento de penas e suas regras: 

Art. 33. A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto. A de detenção, em regime semiaberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado. 

§ 1º - Considera-se:

a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média;

b) regime semiaberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; [...]

Ainda, convém dispor que o artigo 34 do Código Penal sugere que a pena submetida ao regime fechado deve ser cumprida em penitenciária, em cela individual, contendo dormitório, aparelho sanitário e lavatório, com salubridade e área mínima de 06 (seis) metros quadrados; sendo o Segregado sujeito ao trabalho interno, ou seja, no interior do estabelecimento prisional. 

Por seu turno o artigo 35 traz a lume, com relação a pena cumprida em regime semiaberto, além dos termos do artigo 34, o fato de que o Segregado terá direito ao exercício do trabalho externo, ou seja, o preso poderá se ausentar do estabelecimento prisional para trabalhar, em local determinado, com horário pré-definido.

O Código Penal, assim como a Lei de Execuções Penais, ao dispor acerca dos regimes prisionais, os estabelecimentos prisionais adequados para o seu resgate, assim como, os direitos e deveres do segregado, trazem a lume algo de certa forma utópico. 

Isto porque é pública e notória a deficiência do Estado em cumprir à risca, ou minimamente, o que dispõe a Lei Penal e a Lei de Execução Penal, seja pelo fato de que o Código Penal foi instituído pelo Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940 (em vias de se tornar um código octogenário), ou pelo fato de que não há estrutura física, ou seja, não há estabelecimentos prisionais suficientes para suportar a demanda de execuções penais no Brasil.

Sem esquecer os estabelecimentos prisionais existentes, que não têm o mínimo de condições de garantir a subsistência dos Seres Humanos que abriga, quanto mais de propor e garantir o cumprimento fiel do disposto pelo legislador ou minimamente, garantir a ressocialização do preso.   

Isso porque, de acordo com informações extraídas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), há no país uma população carcerária de mais de 700 mil presos, somando-se todas as formas de cumprimento de pena, se mencionar o déficit de vagas, conforme quadro que segue:

Retornando ao benefício previdenciário em questão, vejamos que a redação atual restringe a concessão da prestação previdenciária aos dependentes do segurado recolhido à prisão em regime fechado, enquanto a redação anterior não fazia menção ao regime prisional, tão somente afirmava que o benefício seria devido aos dependentes do Segurado recolhido à prisão, excluindo-se, portanto, a possibilidade de percepção aos dependentes do Segurado preso em regime semiaberto. 

Importante destacar que a exposição de motivos para a MP 871/19 e, por consequência, para a Lei nº 13.846/19, não trouxe justificativa para a referida reforma, ou seja, não explicou os motivos pelos quais excluiu os dependentes do Segurado preso em regime semiaberto da previsão legal para o recebimento do benefício de auxílio-reclusão.

Podemos conjecturar como justificativa para tal exclusão o fato de que o preso em cumprimento de pena no regime semiaberto poder ter concedido o direito ao trabalho externo, ou seja, a possibilidade de se ausentar do estabelecimento prisional para trabalhar em dia e horários previamente ajustados, nos termos da Lei. 

Todavia, diante de todo esse cenário, o que o autor da Medida Provisória, e por consequência da Lei nº 13.846/19, deixou de analisar foi a questão na prática.

Isso porque, a Lei Penal prevê, no parágrafo do artigo 33, que “as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso”, enquanto a sua alínea “b” dispõe que “o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto”. 

Num cenário hipotético temos que todas as penas fixadas entre 04 (quatro) e 08 (oito) anos de reclusão serão cumpridas com início em regime semiaberto. Considerando os requisitos temporais necessários para a progressão para o regime aberto, quais sejam, 1/6 ou 2/5 da pena cumpridos para atingir o regime mais brando, há o mínimo de 08 (oito) meses e o máximo de 16 (dezesseis) meses em que um indivíduo poderá permanecer segregado.

Ainda que haja previsão legal para o exercício do trabalho externo para o caso de cumprimento de pena nesse regime prisional, trazendo o caso hipotético para a Florianópolis/SC, deve-se reverência à Portaria nº 004/2012, que restringe ainda mais a possibilidade de concessão do benefício ao trazer regras mais severas para a concessão da benesse, dificultando o acesso ao trabalho e, por consequência, de rendimentos para seu sustento e o sustento de seus dependentes. 

Outro ponto que merece destaque é que os rendimentos provenientes do trabalho externo ou o pecúlio recebido pelos presos por em trabalho interno não são repassados ao Segregado e, em alguns casos, quando ocorre o repasse do valor à família, é feito com o desconto de parcela, valor este que permanece em conta vinculada ao preso, para resgate após sua soltura. 

Ao restringir a prestação previdenciária tão somente aos Segurados presos em regime fechado o legislador vai de encontro aos princípios gerais do direito previdenciário, assim como, vai de encontro aos princípios constitucionais da seguridade social. 

Por princípios gerais do direito previdenciário temos o princípio da solidariedade que se baseia na solidariedade entre os membros da sociedade, na proteção de todos os membros da coletividade, por intermédio dos sistemas de proteção social e repartição em favor da minoria. Corolário ao princípio da solidariedade há o princípio da proteção ao hipossuficiente, que a nosso ver é a base da prestação previdenciária em comento, que nada mais e do que a ideia de proteção ao menos favorecido. Por fim, o princípio da vedação ao retrocesso social que “consiste na impossibilidade de redução das implementações de direitos fundamentais já realizadas”, impondo-se que os direitos sociais não sejam reduzidos em seu alcance.

Da análise do fato de que a reforma feita com a exclusão dos dependentes do Segurado preso em regime semiaberto do rol de possíveis beneficiários da prestação previdenciária, percebe-se que esta fere de morte os princípios citados, haja vista que configura retrocesso social e vai de encontro a solidariedade, ao impedir que os dependentes dos Segurados presos (no regime semiaberto) deixem de receber prestação previdenciária.

Isso porque, deixa-se à mercê, via de regra, crianças que já vivem à margem da sociedade, que passam a conviver com a ausência de um dos seus pais e ainda se vê sem os rendimentos familiares que lhe conferiam a subsistência mínima de vida.

A crítica merece ser feita, uma vez que aquém do senso comum de que somente o fato de um sujeito ser preso seus dependentes teriam direito ao benefício, ou melhor, chega-se a dizer que será de um salário mínimo por filho do preso, a realidade é bem distinta quando cerca de 7% (sete por cento)das famílias dos presos tem acesso e recebem o benefício.

Não houve nenhuma justificativa na exposição de motivos da MP e na Lei nº 13.846/19 para a referida exclusão. Consabido é que toda mudança gera incômodos, todavia, ao restringir a concessão da prestação previdenciária aos presos em regime fechado e impor a carência mínima o legislador se afasta do que deveria ser basilar, ou seja, torna o benefício menos acessível o que implica em retrocesso social.

Sobre a Autora

• Bacharel em Direito pela Faculdade União Bandeirante- UNIBAN/ANHANGUERA; 
• Pós-Graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Escola do Ministério Público-EMPP; 
• Pós-Graduada em Direito Previdenciário e Processo Previdenciário pela Faculdade Damásio.